sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Mirando o Céu


                Desde sempre eu soube que vim a esse mundo com uma dose de curiosidade um tanto além do normal. Tenho curiosidade em saber as coisas desse mundo e de outros, sejam reais ou ficcionais. Vivo em busca de entender não apenas as razões pelas quais as coisas são, mas o que e como elas são. Tenho vontade de fazer cursos de todas as coisas, das mais simples as mais complexas, de ler todos os livros que já foram ou poderão ser escritos e para além disso, curiosidade sobre o que eu mesma sou capaz de fazer, quais os limites da minha mente e do meu corpo. Todos os dias, para mim, o mundo é um lugar novo, repleto de possibilidades.
                Não quero dizer que sou alguém que está sempre bem, pois tenho minhas fraquezas e meus defeitos e longe de parecer falsa modéstia, sei que não são tão poucos quanto a minha vaidade gosta de imaginar, mas, no geral, acho mesmo que, apesar de todos os pesares, de toda crueldade, de todo desamor, violência e outras barbáries perpetradas pelo ser humano, esse mundo ainda é um lugar incrível, maravilhoso.
                Em algum momento da minha infância eu fui apresentada a duas máquinas que me permitiriam fazer o que meus olhos não eram capazes, de enxergar o mundo em miniatura e o céu que envolve nosso planeta: os microscópios e os telescópios. Assim que eu soube do que eles eram capazes, fiquei enlouquecida! Ainda criança, creio que durante a passagem do Cometa Halley, fui com meus pais até um local onde havia sido instalado um telescópio e, para além de mirarmos o cometa, ainda podíamos contemplar estrelas, constelações e planetas. Se Deus não morava lá no Céu, eu pensava, não estaria em lugar nenhum. Que pena não podermos voar além da luz, não sermos tão evoluídos a ponto de planejarmos nossas férias pelo Céu.
                Na escola conheci de perto o microscópio e saber que o mundo que não enxergamos é tão fantástico quanto o que nos é permitido ver a olho nu, fez com eu que desejasse, profundamente, ter um daqueles só para mim. No colegial, fã das aulas de Biologia, eu andava atrás do meu professor Luiz Alberto, doida para os momentos nos quais o uso do microscópio fosse necessário. Ali eu imaginei que estudaria biologia e era feliz imaginando quantos mini mundos eu poderia conhecer, decifrar. Quis a vida que eu seguisse outros caminhos, mas mantive o meu desejo de ter um microscópio.
                O tempo passou e, já adulta, acabei ganhando um pequeno microscópio. Mesmo limitado, eu usei e abusei dele, observando por outra ótica tudo aquilo que minha curiosidade me incitava a fazer. Dia desses, enquanto eu navegava pela internet vi um telescópio à venda, com lentes capazes de me permitir observar a lua, planetas e estrelas. Nada muito especialmente potente, mas foi o suficiente para trazer de volta aquela criança que um dia, encantada, olhou para o céu pela primeira vez com olhos maiores. Sem pestanejar, comprei a máquina e, desde então, venho perscrutando o céu, olhando para o imenso, divino e misterioso que nos cobre. Confesso que tem sido um alento, sobretudo em tempos nos quais nosso olhar vem procurando refúgio para sobreviver.
                Mirando o céu eu penso que deve haver vida em outros lugares, que tudo isso aqui é tão fugaz e que perdemos tempo demais sendo os tolos da Criação. Não vou viver para viajar a outros planetas, mas posso sonhar que, lá encima, em algum lugar, há lugares nos quais a ganância não destruiu quase tudo que há de bom, de puro, de belo. Olhando para o alto, todos os dias, recordo-me de quanto sou pequena, um mísero ponto no meio do universo e isso, para longe de me deixar triste, só me faz entender meu lugar, meu espaço e minha missão nesse mundo...

Cinthya Nunes – cinthyanvs@gmail.com

domingo, 5 de fevereiro de 2017

A moça do quadro


        Eu a vi meio sem querer, enquanto seguia para o trabalho. Jogada aos pés de uma árvore, ela jazia imóvel, anônima e quase imperceptível para a grande maioria dos olhares dos transeuntes. O que chamou minha atenção foram os olhos dela. Intensos, grandes e vivos como se fossem reais, como se ela não fosse uma pintura em uma tela rasgada e descartada ao léu.
            Fiquei me perguntando qual seria a razão para que ela tivesse sido jogada fora, provavelmente depois de ter enfeitado alguma parede, talvez até um quarto de menina. A pintura em si não era nada extraordinária, mas ainda assim havia nela algo de único, como se uma chama de vida lá tivesse ido se alojar. Pintada em tons quentes, o desenho retratava uma mulher jovem, sem idade precisa, de olhos esverdeados e um sorriso suave, aprisionada em meio a tela de fundo colorido para todo o sempre.
            No dia em que eu a vi chovia bastante e o efeito da água sobre a tela conferia a ela uma aparência ainda mais impressionante e eu tinha a sensação de que ela, em silêncio, clamava por ajuda, como se implorasse para que alguém a resgatasse dali, eis que de nada vale um quadro manchado e rasgado, jogado à própria sorte. Dali, assim que fosse levado pelo caminhão de lixo, deixaria de existir, seja como arte, seja como imitação da vida.
            Embora eu saiba que possa parecer uma certa (ou completa) maluquice, o fato é que fiquei mesmo pensando naquele quadro e na história que por certo há por detrás dele. Será que quem o pintou o fez no desejo de retratar ou homenagear alguém ou apenas terá copiado um modelo disponível em alguma aula de artes? Seria talvez a obra de algum Gepeto, no desejo de deixar de lado a solidão? Sonharia, quem o fez ou quem o abandonou à sombra de uma árvore, que o quadro seria capaz de, silenciosamente, rogar por ajuda?
            No final daquele mesmo dia, quando eu voltava das minhas atividades, ao passar pelo mesmo local, lancei outro olhar em busca da moça do quadro e, uma vez mais ela continuava lá, com olhos suplicantes, quase em um grito de socorro. Concluí que ali, de fato, havia uma anônima obra de arte, capaz de se expressar de uma forma como poucas o podem. E assim como tantas obras desse mundo, em breve seria esquecida para sempre, sem direito a qualquer espécie de aclamação.
            Apesar de ter sido sensível à suplica dela, confesso que não fui capaz de retirá-la do lixo e levá-la para casa. Como explicaria colocá-la, no estado em que se encontrava, em alguma parede? Para ela o tempo, esse algoz de quase todas as coisas, vivas ou nem tanto, havia se esgotado. Por mais estranho que possa parecer, por outro lado, eu não podia deixar que ela se fosse desse mundo sem algum registro, sem que mais alguém soubesse que ela estava ali, presa, imóvel, mas inexplicavelmente viva. Pensei em tirar uma foto para que ao menos eu pudesse mostrar a outras pessoas, mas quando a ideia me ocorreu, quando voltei até onde ela "pré-jazia", apenas encontrei vestígios dela e nada mais. Por certo, deve ter sido recolhida pelo caminhão de lixo que passava naquele dia da semana.
            Pouco mais me restava fazer, exceto sobre ela escrever e, com isso, dar-lhe novo lugar para viver, agora não mais nas cores, mas nas letras, nas linhas que minha imaginação gosta de acrescentar ao papel. De algum jeito ela permanecerá viva e eu terei sido sua fiel escudeira, salvando-a do dragão do esquecimento e disseminando um pouco dela pelos olhos e corações daqueles que tiverem a bondade de prosseguir na leitura desse texto. No fim das contas, penso, todos nós, mortais que somos, em carne, tinta ou papel, tememos o esquecimento, eis que da morte não temos fuga...


Cinthya Nunes - cinthyanvs@gmail.com

domingo, 29 de janeiro de 2017

Curiosidade

Curiosidade
            Se é verdade que o excesso de curiosidade muitas vezes pode se tornar um inconveniente, também acredito que esse impulso humano foi o responsável pela evolução da humanidade. Creio que a maior parte das pessoas tenha dentro de si uma gota que seja de curiosidade, até porque um dia todos foram crianças e poucas criaturas são tão curiosas quanto elas, exceção feita, talvez, aos gatos, campeões nessa categoria.
            Até que eu tivesse duas gatas em meu convívio diário nunca tinha entendido completamente aquele ditado segundo o qual “a curiosidade matou um gato”. Hoje, no entanto, sei a sabedoria popular é incrível, porque não há nada que passe aos olhos de um gato sem que ele queira saber do que se trata. Em casa temos que ter cuidado quando abrimos e fechamos coisas, como malas, máquinas de lavar louça e roupas e caixas de todo gênero, sob pena de “extraviarmos” um felino para todo o sempre.
            Mas não foi a curiosidade dos gatos que me inspirou ao texto de hoje. Em verdade eu me refiro mesmo à curiosidade humana. Penso que essa pode ser dividida em algumas categorias que ora me ocorrem, como: mórbida, natural, exacerbada e inconveniente.  Alguma delas, no mínimo, cada um traz em seu pacote de dados, no software divino que ganhamos de fábrica. O problema é o que fazemos com isso.
            A curiosidade natural é aquela que nos permite sobreviver e caminhar, que nos impulsiona a conhecer coisas, pessoas e lugares novos. É aquele olhar que direcionamos para algo que nunca vimos e que nos atrai ou nos assusta de algum modo. Essa curiosidade nos salva e nos permite transcender, em uma espécie de upgrade.
            Já a curiosidade mórbida, ao meu sentir, é menos nobre. Trata-se, por exemplo, do impulso que faz muitos motoristas diminuírem a velocidade de seus veículos para tentar olhar um acidente recém-ocorrido, bem como o ato de, diante de qualquer desgraça alheia, chafurdar nela como se isso pudesse trazer algum benefício. Acho que o curioso mórbido se contenta em saber do outro, mas nunca se satisfaz enquanto não fizer uma verdadeira autópsia dos fatos.
            O curioso exacerbado pode ser alguém que tem um excelente fator como aliado. Se usa disso para saber mais, para entender o mundo, para conhecer, para se aperfeiçoar, nada melhor do que ter essa sede eterna, essa certeza de que o mundo que conhecemos é a mísera ponta de um infinito iceberg. A história da humanidade é repleta de pessoas que usaram a curiosidade para o bem e, infelizmente, também para o mal.
            O curioso inconveniente, vez ou outra é até engraçado, pois é aquela pessoa que não pode ouvir alguém conversando que quer saber do que se trata, muitas vezes sem se dar conta do papel que desempenha ao se portar assim. Muitos de nós, em algum momento da vida, acabamos sendo dessa espécie, como a criança que pergunta para a professora gordinha se ela está grávida, o amigo que pergunta os recém-casados quando providenciarão um herdeiro, a sogra que, na maternidade, pergunta à nora para quando será o segundo neto dela, a atendente que pergunta se a namorada mais jovem é a filha do homem que a acompanha, e assim por diante, em uma infinidade de perguntas indiscretas.
            De um jeito ou de outro, todos somos curiosos, cada qual em uma medida, à exceção dos gatos, é claro, que completamente os curiosos mais divertidos e insanos que já habitaram esse planeta...


Cinthya Nunescinthyanvs@gmail.com

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Crônica: Cenas Urbanas


            Acredito que algumas das características que me remeteram à escrita de crônicas seja a curiosidade e o gosto pela observação. Embora eu seja uma pessoa falante (talvez até um pouco demais, às vezes), em geral, quando chego em um lugar no qual nunca estive ou estou cercada de pessoas que não conheço, gosto de dedicar um bom tempo a observar, quieta no meu canto. Aprendi, com o tempo, que é melhor, sobretudo, antes de falar ou fazer algo, conhecer o entorno, já que isso pode evitar vários dissabores.
            Assim, quando ando por aí, seja de carro, no banco do carona, seja de metrô ou mesmo a pé, gosto de olhar a paisagem, o comportamento da natureza e das pessoas. Morar em uma cidade como São Paulo, inclusive, é algo bem peculiar nesse sentido, eis que por aqui de tudo se vê um pouco e para uma curiosa nata como eu, essa condição é um deleite. Não raras vezes eu penso em tirar uma foto que possa registrar o que meus olhos notam e minha mente grava, mas nem sempre isso é possível. Além do fato de que eu não domino a arte de fotografar exatamente como vejo, de escolher os ângulos e os destaques corretos, nem sempre dá tempo de sacar o celular para um simples registro, quer pela efemeridade do fato, quer pela rápida passagem que se faça por determinado lugar.
            Se não me é possível, desse modo, compartilhar pela experiência visual algumas cenas urbanas que me captam a atenção, faço uso do que me é mais familiar, buscando as palavras mais adequadas, os pontos e as vírgulas que coloco em meus pensamentos. Escrever permite, por outro lado, que cada qual que possa vir a ler, imagine a cena como melhor lhe aprouver, com os recursos de seu próprio imaginário, com as cores da paleta que preferir.
            Essa semana, por acaso, foi marcada por algumas cenas que passo a descrever, por considerar serem dignas de tanto, pela peculiaridade que contem. A primeira foi quando eu voltava do trabalho, em uma segunda à noite, perto das vinte e três horas. Enquanto o carro estava parado no semáforo, eu notei algo que até então não havia visto. No cruzamento de uma avenida, no centro da cidade, há uma árvore imensa, salvo engano uma falsa seringueira. Com raízes externas e entrecruzadas, sua base parece saída de um filme de fantasia. Isso eu já havia notado, inclusive. O que até então me passara despercebido é a quantidade de ratos, gigantescos, que, correndo de uma raiz a outra, pareciam submergir e emergir delas, revirando o lixo que, infelizmente, é jogado diariamente aos pés da árvore.
            Sei que a cena acima não é exatamente bela, mas é significativa. Ali estão duas expressões da natureza, uma delas lutando para ter um espaço para espalhar suas raízes em meio a uma mínima ilha rodeada de asfalto, dando em troca sombra e abrigo a moradores de rua e, outra, representada pelos roedores que tomam conta da cidade na qual o lixo pelas vias parece ter alcançado seu lugar de (des)honra. No fim, é tudo mesmo uma luta pela sobrevivência e fica para mim a certeza de que nós, seres humanos, não estamos desempenhando nosso papel com louvor.
            Outra cena que igualmente chamou minha atenção nos últimos dias foi a de um prédio em construção, abandonado. Há muitos assim pela cidade, à propósito, por motivos diversos e eu nem faço ideia das razões pelas quais aquele em especial estava no estado em que estava, mas o que de fato é incrível é o fato de que, sobre a laje de parte dele, como um andar não terminado, havia uma árvore. Não um arbusto, mas uma árvore alta e frondosa. Isolada lá em cima, provavelmente há muitos anos já, deve ter nascido de alguma semente levada por pássaros. As raízes, na ausência de terra, devem estar fixadas entre as camadas de areia e outros materiais de construção. Ela nitidamente se apoderou daquele lugar, como uma soberana solitária, mas coroada pela grandeza de lá estar, à revelia da cidade e dos homens.
            A natureza nos mostra, diuturnamente, que ainda temos inúmeras lições a aprender. Crianças do mundo, mal-educadas e egocêntricas, seguimos ignorando seus apelos, certos de que nada haverá a ser pago. Basta, no entanto, parar alguns minutos e olhar em volta de nós, quer consigamos entender, fotografar ou escrever sobre isso...

Cinthya Nunes – cinthyanvs@gmail.com

Conto: Medo do Escuro


            Mesmo sua mãe dizendo para que ele não assistisse ao filme, ele teimou. Não era mais uma criança tola. Já tinha 13 anos e sabia das coisas. Filmes de terror eram diversão e nada mais. Ele sabia que nada daquilo era verdade. Bastava uma bacia de pipoca salpicada com pimenta, um cobertor e depois de duas horas vendo televisão, ele iria dormir tranquilo. No dia seguinte teria prova de matemática e, com certeza, depois de estudar o dia todo, merecia aquela distração.
            Com um beijo de boa noite a mãe foi se deitar. Estava cansada demais. Trabalhara no hospital o dia todo, como enfermeira. Naquele dia não haveria plantão noturno e ela iria aproveitar para dormir um pouco mais. O pai, motorista de caminhão, só chegaria dali a alguns dias. Com a casa em silêncio, ele ligou a televisão, estourou a pipoca e se colocou a postos para assistir a mais um filme de medo, a continuação número 5 de um sucesso de bilheteria. Ele nem se lembrava mais do primeiro, mas com certeza isso não faria diferença alguma.
            O filme começou com uma ligeira retrospectiva, para que fosse possível entender a estória. De fato, era meio assustador mesmo, mas ele sabia que tudo saíra da cabeça de algum roteirista e nada mais. A mãe dele era mesmo muito impressionada. Falava que não via qualquer benefício em assistir algo que a deixaria com a cabeça perturbada. Já bastava o que via todos os dias no hospital. “Quer horror?”– ela dizia. “Vá trabalhar um dia desses comigo na emergência... E ah, não adianta querer ir dormir comigo depois, hein?”
            Por sua vez, ele ria quando a mãe falava aquelas coisas. Já passara o tempo no qual ele era só um menininho com medo dos monstros que insistiam em morar embaixo da cama e habitar seu guarda-roupa. Essa era uma das desvantagens de ser filho único: não tinha ninguém com quem dividir o pavor noturno. Nos piores dias, ele corria para o quarto dos pais e se metia sob as cobertas, implorando para ficar por lá até o dia amanhecer. Mas esse tempo já passara. Ele era um adolescente, quase um homem. Não tinha medo de nada.
            Passada meia hora de filme, entretanto, ele percebeu que subestimara a série. A coisa ali era meio pesada mesmo. Devorou a pipoca com as duas mãos, sem nem perceber que o fazia compulsivamente. Encolhido sob as cobertas, achou que a temperatura baixara muito, subitamente,  e que o melhor a fazer seria ir dormir, afinal de contas amanhã ele teria prova. Por outro lado, se ele não terminasse de ver o filme, seria chacota da mãe no dia seguinte.
            Assim que o filme acabou, ele subiu as escadas do sobrado onde moravam, enrolado no mesmo cobertor, sentindo alguns tremores. Talvez estivesse ficando resfriado. Quando chegou ao topo da escada ele se deu conta de que,  provavelmente, esquecera a luz da cozinha acesa, pois dali se via a luminosidade. Pensando bem, ele tinha certeza de que havia desligado. Contrariado, desceu e assim que entrou na cozinha viu a porta da geladeira aberta. Sentiu como se todo o frio que dela emanava num repente pulasse em seu peito. Será possível que o pai houvesse voltado mais cedo da viagem? A mãe ele tinha certeza de que não havia se levantado durante a noite...
            Com o coração aos pulos, ele se apoderou de uma faca que estava sobre a pia e virou-se olhando para todos os cantos, até que, dentro do armário que ficava sob a pia, ele vislumbrou dois olhos brilhantes, que o contemplavam fixamente. Deu um pulo para trás e sentiu como se as forças se esvaíssem de suas pernas, até que, indo em sua direção, Demóstenes, o gato amarelo que da vizinha surgiu em toda sua glória, carregando na boca um pedaço de frango que, supostamente, deveria estar dentro da geladeira.
            Ele era mesmo um tolo!! Que bobagem! Ficar com medo por besteira. Amanhã ele iria falar para a vizinha dar comida para o pobre do gato. Alisando a cabeça do bichano, ele, agora bocejando, subiu novamente as escadas em direção ao quarto. Assim que se deitou na cama ficou pensando em como o medo faz coisas tontas com a cabeça das pessoas mesmo.          Que mal havia em deixar os pés para fora da cama? Ele só não deixava porque tinha aflição e também porque estava muito frio. E dentro do armário? Por que temer as roupas e cabides? Ele deixava as portas escancaradas apenas porque as roupas precisavam tomar ar. Só por isso.
            Fechou os olhos e tentou pegar no sono, mas esse estava fugidio. Começou a relembrar as fórmulas matemáticas e já estava quase dormindo quando um barulho, aparentemente vindo do armário de sapatos o fez despertar. Deveria ser o gato novamente. Já ia se levantar para gritar com o bicho quando se lembrou de que esse armário ele deixara fechado e não havia como o gato ter entrado ali. Quando resolveu por fim conferir o que era, uma corrente de vento bateu a porta do guarda-roupas e balançou as cortinas. Sem pensar, num pulo ele se enfiou sob as cobertas de novo, tremendo. Ligou a luz da cabeceira, a mesma que não deixava ligada há alguns anos e começou a rezar quando ocorreu a ele pensar como é que o gato havia acendido a luz da cozinha...
            Reuniu toda a coragem que lhe restara e saiu correndo dali para se enfiar sob as cobertas na cama da mãe. Amanhã cedo ele pensaria melhor naquele negócio de não ser mais criança...
Cinthya Nunes – cinthyanvs@gmail.com


Crônica: Jornal pra Cachorro



Dia desses, saindo do metrô, olhei para a banca de revistas que fica muito próxima e li um pequeno cartaz no qual estava escrito "Temos Jornal para Cachorro". Por óbvio que, para uma curiosa crônica como eu, o estranho anúncio não poderia passar despercebido. Demorei alguns minutos para me dar conta da verdadeira destinação dos referidos jornais. Por alguns minutos, contudo, foi engraçado pensar em um jornal destinado ao público canino, o que perfeitamente poderia ocorrer em um mundo de fantasia, em algum universo paralelo, desses que dão vida a filmes que transbordam nosso imaginário. 
Fiquei imaginando quais as notícias um jornal para cachorro poderia ter e, dando asas à imaginação, supus que as principais manchetes seriam sobre os melhores lugares para se fazer xixi e dicas de especialistas sobre “como convencer seu dono a te dar a comida dele e que não foi você que começou a briga com a almofada”. No boletim feminino, talvez houvesse algo sobre “como lidar com os a TPC, também conhecida como tensão pré-cio” ou a luta para substituir os termos Cadela e Cachorra por algo menos pejorativo.
Maluquices à parte, os jornais anunciados na Banca se destinam a servir de banheiro para os cães, sendo comum também serem colocados para forrar ambientes nos quais há animais de estimação. Dei uma olhada melhor para a pilha de jornais postos à venda e notei que deviam ser jornais que não foram vendidos e cujas notícias se tornaram amanhecidas, tal como pão duro, não mais servindo para os seus fins primordiais e essa ideia me levou a outras reflexões, sobre as quais prossegui, no percurso que fiz a pé, matutando.
Fiquei imaginando quantas notícias não lidas devem jazer no fundo de caixas, gaiolas, solapadas de xixi e cocô de cachorro. Provavelmente esse mesmo texto que agora escrevo vá ocupar esse espaço na casa de alguém. Se nessa hora a pessoa se dispusesse a ler as palavras aqui escritas, veria minha mão levantada, pedindo para que me dessem um minuto de atenção antes que minha escrita venha a sucumbir, sem leitura, virgem, no mundo do que nunca se leu ou será lido. Ao escrever sobre isso, inclusive, sou tomada de um certo pavor, receosa de permitir que meus textos deixem o conforto (às vezes desconforto) das minhas ideias e de meu teclado, eis que, postos no mundo, não mais me pertencem, não mais os posso proteger... Nesse sentido, são como filhos de papel, paridos para serem livres, para buscar quem os queira aproveitar.
É fato, porém, que muitas das notícias trazidas pelos jornais, não por culpa dos jornalistas ou redatores, mas pelos protagonistas das histórias e fatos relatados, sobretudo nos últimos tempos, andam mais dignas de serem Jornal para Cachorro do que de ocuparem espaço nas vidas alheias. É tanta corrupção, tanta falcatrua anunciada, que dá desgosto até saber o que mais se descobriu, até porque qualquer um pode imaginar que apenas se trata da ponta de um iceberg de proporções astronômicas.
Ler que a maior Casa Legislativa Brasileira quer anistiar os praticantes de Caixa 2 faz com que todo cidadão de bem, para além de poder enfartar ou ter uma congestão, seja chamado, no mínimo, de idiota. Talvez devêssemos colocar, mesmo para as notícias mais frescas, uma advertência de que se trata de Jornal para Palhaços. Pobres de nós, cidadãos de bem, cumpridores de nossas obrigações, espoliados até os ossos por uma corja podre, venal e cretina que não teme a espada da lei, apropriando-se do dinheiro público e usando para forrar seus chiqueiros, a bandeira brasileira...

Cinthya Nunes – cinthyanvs@gmail.com